sábado, julho 15, 2006

O Ginjal na Literatura IV


«[...] A boina basca, a barba aparada e o fato completo, aliados à sua figura imponente, foram a sua imagem de marca durante anos a fio nas ruas de Lisboa.
Júlio fez da vida um autêntico manifesto cultural, sempre fiel a quatro coisas: o surrealismo, o anarquismo, a mulher e os filhos, que felizmente, nunca lhe faltaram pela vida fora.[...]
Júlio Verne dizia, aos sete ventos, que quase tudo o que aprendera sobre o mundo fora nas mesas de café.
Mas a faceta mais curiosa e inimaginável da sua vida, era o facto deste artista surrealista alfacinha nunca ter saído de Lisboa. Dizia, orgulhosamente, que devia ser o único lisboeta que jamais saíra da sua cidade.
Júlio nem sequer tivera a tentação de atravessar o Rio Tejo em qualquer barca para apreciar as saborosas mariscadas de Cacilhas... quanto mais envolver-se em outras viagens por esse mundo fora. [...]

In "Um Café com Sabor Diferente", de Luís Alves Milheiro, ilustrado pelo óleo de Carlos Botelho, "Lisboa e o Tejo".

quarta-feira, julho 12, 2006

O Ginjal na Literatura III


«Ao longo deste cais viaja connosco a memória dos tanoeiros, a azáfama dos pescadores, a abundância de um rio que era transparente onde o dorso dos golfinhos se confundia com as sereias e os tritões das estórias inesquecíveis de Romeu Correia.
Vista assim deste lado, a ponte é uma linha harmoniosa que se abre sobre o horizonte, desafiando o azul até lá, onde o Tejo já é oceano e a silhueta das naus ainda é possível aos semeadores do Tempo-a-Haver.
Aqui o vento é brando e perfumado de maresia.
Caminho protegida pelo perfil das casas onde é fácil reinventar os rostos que as povoaram e parecem espreitar ainda, silenciosos, nas janelas mais altas, inventando romances de viagens e sorrisos de marinheiros.
Por entre as casas nascem os pátios, ervas breves, penumbras de mistério e humidade. Das paredes, os azulejos desaparecem, lentamente.
Pequenos fragmentos de louça, cordas, bocados de madeira, aromas inconfundíveis de um tempo que nos devolve o eco de vozes laboriosas mas para sempre presentes. [...]
Ao fim da tarde Lisboa ilumina-se. A ponte é uma linha suspensa. Os pescadores recolhem os baldes, as linhas e os iscos. [...]
Como diria Pessoa: "Todo o cais, é uma saudade de pedra".»
(In "Almada - uma gaivota no vento", capítulo: Ao Longo Deste Cais.
Da autoria de Maria Rosa Colaço - texto - e Carlos Canhão - aguarelas)

domingo, julho 09, 2006

A Lapa de Cacilhas


A Lapa situava-se no Lugar de Cacilhas, próximo do cais e do antigo Largo Costa Pinto.
Ao fundo, à esquerda, ficava a entrada do Estaleiro de Hugo Parry & Son, com suas docas de reparação de navios, em frente o portão alto e estreito em ripas de madeira cortando a passagem para o "Black", que ia dar aos armazéns de descarga do carvão, à direita o altíssimo Torreão, junto a um antigo prédio que foi adquirido por José Malaquias, que o reconstruiu, adaptando no piso térreo uma "Casa de Pasto" onde os operários almoçavam diariamente [...].
A Lapa, de onde se avistava a bela Lisboa, o Rio Tejo com barcos de todas as espécies e "calados", o Largo com a velha Parceria dos barcos grandes e o embarque dos pequenos, o grande movimento de táxis, as primeiras camionetas, as barracas de frutos com seus vendedores, as carrinhas de fretes, que antes eram feitos em carroças puxados por muares, o Chafariz ali perto, o Farol ao fundo junto ao rio, contando com o vaivém dos operários, que ao som da "gonga" da doca enchiam de alegria e movimento, junto aos pregões dos vendedores ambulantes [...].
(Aguarela e texto de Anyana, in "O Scala", Inverno 2006)

sexta-feira, julho 07, 2006

Passeio Nostálgico no Ginjal com a Bola nas Mãos


A minha última crónica obriga-me a fazer uma pequena reflexão sobre a importância do futebol no nosso país e no mundo.
Gosto muito deste desporto, que além de ser extremamente fascinante, foi muito bem idealizado. Penso que esta opinião é partilhada por todos aqueles que tiveram a oportunidade de correr atrás de uma bola em qualquer campo baldio, com o objectivo de a chutar para as balizas improvisadas, atrás da vitória. Eram jogos deliciosos, disputados sem cronómetro e sem árbitros, no habitual "muda aos cinco acaba aos dez".
Tenho pena que a alienação e os muitos interesses económicos e sociais tenham retirado alguma da beleza inicial do futebol, mas esse foi o preço que tivemos que pagar pela sua modernidade e transformação em espectáculo de massas, que acabaria, naturalmente, por se revelar um excelente negócio, pelo menos para alguns.
Provavelmente esta é a parte mais negativa do futebol.
É por isso que é usada abusivamente por algumas vozes criticas (Pacheco Pereira é o porta estandarte...), incapazes de perceberem a sua importância junto de milhões de portugueses, eternos perdedores no dia a dia e cujas carências sociais e económicas os levam a viverem as vitórias dos outros como se fossem suas. Os êxitos dos clubes e da selecção são uma das poucas oportunidades que têm de sorrir e ter alguma esperança no futuro...
Isto acontece em todos os países onde os cidadãos são menorizados por quem governa. Infelizmente, esta continua a ser a prática governativa no nosso país.
Nã posso fugir a um lugar cada vez mais comum: culpar Salazar do nosso atraso e ignorância em relação aos outros países do velho continente. Mas ele é, sem sombra de dúvida, o grande culpado da falta de amor próprio e até de ambição pessoal dos nossos pais e avós, já que como estadista sempre tratou os portugueses como uns coitadinhos, como se tivessem qualquer atraso cognitivo.
Só que o nosso país já vive em democracia há mais de trinta e dois anos e as coisas não mudaram assim tanto...
É por isso que aponto o dedo a todos aqueles que já foram Poder e que nunca apostaram a sério na Educação e na Cultura dos portugueses. Pacheco Pereira também tem responsabilidades, embora normalmente fale como se nunca tivesse sido deputado ou exercesse cargos partidários com responsabilidade.
Todos nós sabemos que um povo sem cultura e educação é mais ignorante, mais maleável e mais embrutecido.
O grande culpado do nosso atraso não é o futebol, mas sim, todos aqueles que só se têm preocupado com os seus umbigos e com as suas contas bancárias desde a Revolução de Abril.
O país só vai mudar quando se tomarem medidas sérias para acabar com o populismo governamental, com o caciquismo autárquico, com o ensino oco que fabrica doutores que nem sequer sabem escrever correctamente português; com uma comunicação social subserviente e rasca - especialmente a televisão, entre outras coisas. Ou seja, quando houver gente séria e responsável a governar este lugar, cada vez menos paradiziaco, plantado à beira mar.
O futebol? Não tem qualquer culpa de ser um jogo bonito e fascinante...

quarta-feira, julho 05, 2006

A Vaca Portuguesa no Mundial



Embora goste muito de futebol, tinha pensado passar ao lado desta "febre" populista que encheu o país de bandeiras, camisas, cachecóis, bonés e canções patrioteiras.
Também não me apetecia juntar ao coro dos "intelectuais" (detesto esta palavra, não sei porquê...) que não gostam de Scolari. Embora soubesse, que para falar da Selecção, tinha de ser critico.
Na minha opinião, quem gosta de ver um bom espectáculo de futebol, está longe de ficar satisfeito com o modelo de jogo que a Selecção Portuguesa utiliza, demasiado feio e claramente abaixo da qualidade dos seus jogadores.
A culpa é do Scolari? Na minha perspectiva sim. Na perspectiva dele não. Para mim futebol é espectáculo, golos, emoção, jogadas deslumbrantes e momentos mágicos. Para ele, futebol é eficácia, ganhar de qualquer maneira. Em suma, não tem nada a ver com beleza.
O que é certo, é que se Portugal jogasse um futebol bonito, ao nível de um Figo ou de um Deco, já tinha regressado a casa...
Se analisar todas as exibições da Selecção, até chegarmos às meias finais, chego à conclusão que a nossa equipa foi preparada, psicologicamente e fisicamente, para enfrentar qualquer "guerra", e não apenas para participar no Campeonato do Mundo de Futebol. Só desta forma é que foi possível resistir a uma Holanda - durante tempo demais em superioridade numérica - e a uma Inglaterra, com um potencial futebolístico superior ao de Portugal.
Chamam "sargentão" ao Scolari, mas ele é muito mais que isso, é um verdadeiro "general" no campo de batalha verde. Consegue transmitir uma grande força interior aos seus atletas, transformando-os num verdadeiro "exército". Não sei qual é a influência do livro "Arte de Guerra" de Sun Tzu, das Senhoras do Caravaggio e de Fátima ou dos telefonemas com os seus amigos padres e psicólogos brasileiros na mentalização dos seus "guerreiros". Sei sim que a equipa demonstra ter uma força colectiva, que lhe permite enfrentar qualquer equipa do Mundo.
É por isso que estou confiante na vitória portuguesa nas meias finais e na final.
Claro que para vencermos, também confio na ajuda da bonita "vaca portuguesa", exposta no Rossio...

terça-feira, julho 04, 2006

Almada e o Teatro Capital



Entre os dias 4 e 18 de Julho decorre o 23º Festival de Almada, o maior acontecimento cultural anual da cidade, que além de a elevar a "Capital do Teatro" no começo de cada Verão, levanta sempre algumas questões pertinentes, pelo menos nas mesas dos cafés.
Embora a sua qualidade não seja colocada em causa, é pouco consensual - pelo menos entre vários agentes culturais - o preço que a Autarquia paga (são muitos milhares de euros...) para ostentar durante quinze dias o título de "Capital do Teatro". Há mesmo quem diga que a Companhia de Teatro de Almada é o nosso "clube de futebol" da Superliga...
Como se compreende, este investimento provoca um folclore político pouco habitual na cidade, porque os jornais, as rádios e as televisões atravessam o rio e vem ao espectáculo... dando voz aos políticos das "sinergias", do "desenvolvimento sustentado" e da "cidade solidária"...
Tenho alguma pena que o teatro não desça a Cacilhas, onde outrora existiu o Clube José Avelino, um clube de "finórios" que trouxe à localidade ribeirinha grandes nomes e peças do teatro português, na primeira metade do século vinte.
Recordo que o Ginjal também teve - há meia dúzia de anos - um grupo de teatro num dos barracões abandonados... quando ainda havia alguma esperança na recuperação cultural deste espaço aberto...
Para terminar esta crónica em beleza e sem polémicas, não posso deixar de aplaudir o Joaquim Benite e a sua "Trupe", quase invísivel. Eles merecem, mais que ninguém, o êxito deste festival internacional, que dura e dura há vinte e três anos, sempre com grande qualidade e diversidade na oferta de espectáculos.

domingo, julho 02, 2006

As Marchas Populares e o Tejo


Embora não seja fácil, vou tentar falar das Marchas Populares de Almada de uma forma positiva. Vou pensar unicamente nas instituições e nas pessoas de múltiplas gerações, que se apresentam em público nas Festas Sãojoaninas, cujo brilho nos olhos e ar sorridente com que se exibem, são os melhores exemplos da sua felicidade.
Vou esquecer que esta iniciativa nem sequer faz parte das tradições almadenses (foi copiada da Capital...), assim como todo o aproveitamento político que está por detrás desta festa, onde por vezes se fica com a ideia que também existe um "campeonato" entre as muitas freguesias do concelho. E pior ainda, que está vedada à maioria dos almadenses, já que o habitual circuito dos marchantes está cada vez mais reduzido e estes dançam apenas junto ao habitual palanque presidencial, um exemplo mais próximo do populismo que do comunismo...
Só quem tem a possibilidade de conseguir um lugar com boa visão ou de se deslocar ao Pavilhão dos Desportos (foi o meu caso), pode apreciar a qualidade deste espectáculo, onde os marchantes aparecem, ano após ano, mais bem vestidos e ensaiados, quase sempre inspirados em temas ligados à história de cada uma das freguesias presentes.
Para terminar, vou dar um destaque especial à presença do Sport Almada e Figueirinhas, uma colectividade popular cacilhense, que se estreou pela primeira vez neste concurso. Foi uma boa estreia, pois além de se apresentarem muito bem, utilizaram os cacilheiros e o velho Farol verde, que "piscou o olho" ao Tejo e aos pescadores, durante muitos anos, como tema principal dos seus arcos.